Silvio Almeida na Câmara e os direitos humanos como alvo dos extremistas
Comparecimento de ministro em sessão conjunta de comissões do Legislativo desvela estratégia de bolsonaristas para permanecer em evidência
Durante mais de quatro horas o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, respondeu a perguntas feitas por deputados em sessão conjunta das Comissões de Fiscalização Financeira e de Segurança da Câmara dos Deputados nesta terça-feira (5). O motivo de sua participação seria falar a respeito do custeio da viagem a Brasília de Luciane Barbosa Farias.
Se de fato fosse essa a intenção dos parlamentares que assinaram requerimentos para ouvir o ministro, a sessão poderia ser encerrada após a primeira intervenção, feita pela deputada Adriana Ventura (Novo-SP). “Ela é esposa de líder do Comando Vermelho, condenada em segunda instância por organização criminosa, associação para o tráfico e lavagem de dinheiro. Nos causou muito desconforto, principalmente porque houve audiência com servidores e o ministério pagou diárias e viagens”, disse a parlamentar.
“No encontro do qual participou a mencionada senhora — que eu nunca vi, com a qual eu não me reuni, nem meus secretários, nem meus assessores diretos —, foram os comitês estaduais que indicaram seus representantes. Este é o ofício recebido do estado do Amazonas. Mesmo que o ministério contasse com qualquer serviço de inteligência, o nome da mencionada senhora foi recebido no dia 3 de outubro pelo ministério e ela só veio a sofrer condenação no dia 8 de outubro”, respondeu Almeida.
O ministro lembrou ainda que a emissão de passagens seguiu a Portaria n.º 29, de 31 de janeiro de 2022, assinada pela Secretaria Executiva Adjunta do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, à época comandado pela ministra Damares Alves. “Nós seguimos exatamente os filtros que existiam para o controle de quem participa dos eventos. E, de novo, essa indicação foi feita para uma pessoa que até aquele momento não tinha nenhum tipo de condenação. Isso é muito importante dizer.”
Isso já havia sido dito anteriormente e o episódio continuou repercutindo, em parte, por conta de uma parcela da mídia tradicional ter tentando levar adiante um assunto que se esgotava em si. Aliás, a alcunha criada por um veículo de comunicação para se referir a Luciane, “dama do tráfico”, foi repetida à exaustão por bolsonaristas, o que dá uma medida de como este espectro midiático alimenta a extrema direita brasileira.
A partir daí, parlamentares extremistas fizeram o que costumam fazer em comissões: repetiram a mesma pergunta já feita anteriormente, fizeram insinuações e provocações, divulgaram fake news… Tudo para cortes selecionados que vão servir às redes sociais e também alimentando a veículos tradicionais, nacionais e locais, que buscam espaço na economia da atenção com o chamado jornalismo declaratório.
Se à época do governo Bolsonaro nada de ruim era responsabilidade do governo federal — inclusive a trágica condução da pandemia, que seria culpa, segundo os governistas de então, dos estados, dos municípios e do STF —, Silvio Almeida teve que responder a questionamentos como se seu ministério fosse uma espécie de juízo universal sobre qualquer temática que parlamentares entendessem fazer parte da sua órbita.
Assim, teve que responder a questionamentos sobre as condições de presos pelos ataques de 8 de janeiro no complexo penitenciário da Papuda, gerido pelo governo do Distrito Federal. Almeida mostrou as 26 recomendações encaminhadas pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura para as detenções do DF e falou dos desafios em relação a um sistema carcerário que tem uma média de 60 mortes por dia no Brasil.
Estratégia antiga
O ministro Silvio Almeida já foi algumas vezes ao Congresso Nacional durante a sua gestão. Trata-se de um alvo preferencial, junto com Flávio Dino, de pedidos e requerimentos de comissões parlamentares. Em várias delas, a oposição tem maioria e parlamentares extremistas ocupam posições de comando.
Os direitos humanos, de forma diversa, sempre foram tema da direita brasileira. Se após a redemocratização figuras egressas da ditadura tinham algum acanhamento em defender o antigo regime, àquela altura se agarraram na questão da segurança pública para pregar seus discursos mais virulentos, sem medo. Deputados se elegiam com base nesse nicho e políticos como o ex-governador Paulo Maluf defendiam a “Rota na rua”, uma forma indireta, ainda que pouco discreta, de legitimar a violência policial.
Sem uma efetiva Justiça de Transição e sem a concretização de processos de memória e verdade, o que se viu foi um terreno fértil para o crescimento dessa linha política. Como Estado, o Brasil aderia a tratados nos quais se comprometia com a defesa dos direitos humanos, com novos arranjos institucionais que previam a implementação de políticas e a elaboração de sistemas nacionais na área. Por outro lado, a cultura autoritária foi se fortalecendo.
O ano de 2015 talvez tenha sido o mais emblemático para o início da escalada extremista, com manifestações de rua em que pessoas pediam a instauração de um regime militar no Brasil sem serem incomodadas. No entanto, antes disso, em 2013, uma jogada política alçou um representante da extrema direita à presidência da Comissão dos Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM).
A CDHM, à época, foi a penúltima comissão dos 21 colegiados da Casa a ter seu presidente escolhido. Pelo critério de proporcionalidade, o PSC, então partido do deputado federal paulista Marco Feliciano, não teria direito a nenhum acento, mas ficou com a maior representação no colegiado, com cinco membros titulares. Duas vagas haviam sido cedidas pelo PSDB, outras duas pelo então PMDB e uma pelo PP. Ilustrativo de como legendas tidas como de “centro” ou “centro-direita” pavimentam o caminho do sucesso de extremistas.
Feliciano usou a comissão para promover sua imagem, buscando sempre a polarização em temáticas caras ao seu nicho. Eleitoralmente, deu certo. Passou de 12º deputado federal mais votado em São Paulo, em 2010, com 212 mil votos, para a terceira colocação no estado em 2018, com 398.087 votos. A fórmula seria repetida por outras figuras, anabolizadas pelo domínio que as redes sociais passariam a ter no imaginário da população.
A visão distorcida dos direitos humanos
Já foi dito aqui que a extrema direita tem por hábito esvaziar os termos de seus sentidos para adaptá-los ao seu discurso. Acontece, por exemplo, com “liberdade”, palavra que se torna destituída de qualquer compromisso com a responsabilidade coletiva e é relacionada apenas com desejos e anseios essencialmente individualistas. Com os direitos humanos ocorre o mesmo.
Ainda que se trate de uma construção social e histórica, os direitos humanos também têm um fundamento de base jurídica construído ao longo dos anos, que forma seu eixo principal. É uma plataforma emancipatória de direitos cuja finalidade é preservar a dignidade humana, respeitando princípios como os da diversidade, pluralidade, inclusão, reconhecimento do outro e respeito à diferença.
Na extrema direita, a expressão é reapropriada de outra forma. Primeiro, os direitos deixam de ser universais, restritos agora a quem, segundo a visão do segmento, os mereça. “Direitos humanos para humanos direitos”, dizem, cabendo, obviamente, a eles próprios o julgamento de quem é e quem não é “merecedor”.
Isso coincide com a noção de “povo” adotada por essa corrente ideológica. A palavra deixa de se referir ao conjunto das pessoas e passa a representar apenas aqueles que se alinham com as suas lideranças. Um conceito excludente que obedece à lógica do discurso de ódio e da criação de inimigos imaginários.
Em artigo publicado em 2020, Maria Clara Gomes M. Cavalcanti, da Universidade Federal do Ceará (UFC), e Ruberval Ferreira, da Universidade Estadual do Ceará (UECE), destacavam alguns trechos do discurso de posse de Jair Bolsonaro, retratando como os direitos humanos entravam na fala do então presidente:
“Temos o grande desafio de enfrentar os efeitos da crise econômica, do desemprego recorde, da ideologização de nossas crianças, do desvirtuamento dos direitos humanos, e da desconstrução da família. (…) Também é urgente acabar com a ideologia que defende bandidos e criminaliza policiais, que levou o Brasil a viver o aumento dos índices de violência e do poder do crime organizado, que tira vidas de inocentes, destrói famílias e leva a insegurança a todos os lugares.
Nossa preocupação será com a segurança das pessoas de bem e a garantia do direito de propriedade (…)”.
Bolsonaro não só tentava dar um novo sentido aos direitos humanos, alvo, de acordo com ele, de um “desvirtuamento”, como associava a expressão à “família”, novamente entendida ali como um conceito bastante restrito e excludente. Ao falar da “ideologia que defende bandidos e criminaliza policiais”, foi interrompido pelo público que o acompanhava aos gritos de “mito”, demonstrando a popularidade de difusão de um conceito falso, entronizado na sociedade brasileira há décadas.
Silvio Almeida também foi questionado sobre o tema na Câmara. “Junto ao Observatório dos Direitos Humanos, que vamos lançar em 11 de dezembro, iremos construir uma política nacional para as vítimas de violência e uma política nacional voltada para a proteção dos direitos humanos dos policiais, dos agentes de segurança pública”, pontuou o ministro.
“Proteger a população contra a criminalidade, agindo com base nos ditames da lei, é parte essencial de toda e qualquer política de direitos humanos. A segurança é um direito fundamental. A segurança é um direito humano”, disse ainda. “Por isso, é importantíssimo que, além de respeitar os direitos humanos, os policiais também tenham os seus direitos respeitados.”
O ministro conseguiu em sua fala abrir um espaço de diálogo em um local repleto de armadilhas plantadas pelos extremistas. De qualquer forma, é um passo importante, mas é necessário ir além. Em um país que tem uma transição democrática inconclusa, retomar a centralidade dos direitos humanos deveria ser um dever não só do campo da esquerda, mas de todos que se opõem ao autoritarismo. O caminho é longo, passa pela educação e por uma construção histórica que não pode prescindir da luta política cotidiana.
Foto de capa: Renato Araujo/Câmara dos Deputados