Quando os neoliberais namoram o fascismo
Tendo em vista apenas um nicho eleitoral que possa catapultá-los politicamente, representantes da "nova política" deixam acesa a chama extremista no Brasil
O governador de Minas Gerais Romeu Zema (Novo) rebaixou ainda mais o nível do debate político no Brasil em entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo, divulgada neste domingo (6). Ele falou sobre a criação de um consórcio aglutinando estados do Sul e Sudeste para se opor ao Norte e ao Nordeste como forma de equilibrar o que, para ele, é um embate desigual, em especial por recursos públicos.
“Outras regiões do Brasil, com estados muito menores em termos de economia e população se unem e conseguem votar e aprovar uma série de projetos em Brasília. E nós, que representamos 56% dos brasileiros, mas que sempre ficamos cada um por si, olhando só o seu quintal, perdemos. Ficou claro nessa reforma tributária que já começamos a mostrar nosso peso”, disse, comparando ainda estados nordestinos a “vaquinhas que produzem pouco”.
A reação no mundo político não tardou, seja de governadores e políticos do Norte e Nordeste, como de outras figuras de Minas Gerais e mesmo do Sul e Sudeste. Como apoio, apenas o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), também presidente nacional do seu partido, que, assim como o próprio Zema, acabou dando declarações posteriores negando qualquer tipo de intenção xenofóbica ou separatista e acusando “distorções” das declarações.
Pode-se dizer quase qualquer coisa a respeito do episódio, menos que foram atos impensados dos dois, identificados como representantes de uma autodenominada “nova política”.
Questão de “mercado”
Mesmo o recuo faz parte da estratégia, como fez uso em diversas ocasiões, outro “novo político” aparentemente aposentado, o ex-governador paulista João Doria. Fosse em relação a medidas como flexibilização de medidas restritivas na pandemia ou no vai-e-vem em sua pretensão de ser candidato à Presidência, o tucano analisava sempre a repercussão de suas falas ou iniciativas nas redes sociais, buscando corrigi-las ou aprofundá-las conforme o humor retratado nas plataformas. Um fazer político em boa medida quase aleatório, e certamente irresponsável.
Doria, Leite e Zema beberam da fonte do bolsonarismo e mediram a distância em relação ele de acordo com as próprias conveniências. Agora, o governador mineiro busca um segmento da sociedade que se agarra aos ideais da extrema direita, entre os quais a xenofobia (característica de todos os movimentos extremistas no planeta) e o preconceito contra nordestinos.
Um dado ilustra o tamanho da venalidade desse tipo de declaração. Segundo a Central de Denúncias da Safernet, nas eleições de 2022 houve um salto no número de denúncias relacionadas a ataques xenofóbicos contra nordestinos na internet: foram 10.686, representando uma alta de 874% em comparação com 2021.
Diante disso, qualquer político teria como missão combater e desestimular ataques de ódio similares. Mas Zema vê neste segmento um mercado de votos. E pretende repetir a trajetória do próprio Bolsonaro, conquistando um nicho eleitoral hoje numeroso e consolidado no Brasil, que garantiria no mínimo uma ida ao segundo turno em uma disputa presidencial.
Neoliberalismo e extrema direita
Em artigo publicado em 2022, o professor da Escola de Comunicações e Artes Dennis de Oliveira já havia alertado sobre a proximidade entre neoliberalismo e fascismo. Ali, cita o livro A nova razão do mundo, em que Christian Laval e Pierre Dardot “apresentam a instigante ideia de que o neoliberalismo não é apenas um paradigma econômico, mas uma nova razão governamental, conceito desenvolvido por Foucault que se define pelo encontro de um modelo de sociabilidade com uma racionalidade governamental”.
“A racionalidade governamental que vai ao encontro deste modelo de sociabilidade é justamente garantir a ‘liberação’ destas atitudes (que viram sinônimo de liberdade), inclusive permitindo que todos os recursos, seja usar armas de fogo ou disseminar fake news, possam ser utilizados”, aponta Oliveira.
Tal “liberação” de atitudes se confunde com a noção adulterada de liberdade utilizada pela extrema direita e é fácil de ser encontrada em todo o discurso de Zema. Ele não só legitima e estimula o preconceito como ignora o fato de a desigualdade no Brasil ter sido constituída social e historicamente, não sendo um advento da natureza. Não surpreende, lembrando que nos dois discursos feitos por Bolsonaro no dia de sua posse presidencial, a palavra “desigualdade” não aparecia sequer uma vez.
Parte do campo da direita se insurgiu contra Zema, o que poderia sinalizar uma correção de rota em vista do que aconteceu em 2018 e também em parte em 2022, quando esse setor não hesitou em se aliar a um extremista, revelando-se, também o tamanho de sua convergência ideológica. Mas pode também ser simplesmente um cálculo eleitoral.
O fato é que o combate à extrema direita e seu ideário, que tantos males trouxe e ainda traz ao país, não pode ser uma tarefa apenas do campo da esquerda. Passou da hora do setor que muitos ainda insistem chamar de “campo democrático” assuma sua responsabilidade. Ou veremos uma repetição do que já foi visto no passado recente, com legendas tradicionais sendo fagocitadas por extremistas.