Não é um domingo qualquer na Argentina
Disputa entre Sergio Massa e Javier Milei é decisiva para o país, mas também sinaliza sobre formas e estratégias de se fazer política atualmente
Neste domingo (19), a Argentina decide quem será seu próximo presidente em um embate que desafia sua história recente, traz elementos novos para a análise política e pode modificar as relações do país com seus vizinhos e com o próprio resto do mundo.
De um lado, Milei é um produto típico da antipolítica cultivada na frustração das pessoas que muitas vezes passam a relativizar a importância da própria democracia. Similares a ele existem em outros países, como vimos no Brasil, com Bolsonaro; nos Estados Unidos, com Donald Trump, ou em países da Europa.
Em comum, o candidato do La Libertad Avanza e seus aliados trazem desde temas generalistas como a “defesa da família”, o posicionamento contra o aborto e o afrouxamento das restrições às armas de fogo. Além de uma espécie de revisão histórica do significado da ditadura argentina, com sua vice, filha de um militar, tendo realizado em setembro um ato em “homenagem às vítimas do terrorismo”. Na ocasião, ela falou que era “hora de reivindicar aqueles que lutaram contra os grupos terroristas que tentaram instalar o comunismo na Argentina e que hoje estão presos injustamente por uma Justiça enviesada e manipulada pela esquerda”.
Contudo, no caso de Milei, soma-se a esse ideário um ultraliberalismo que também tem pontos em comum com seus análogos de outros lugares, de uma forma mais extrema. Ele prega a extinção do Banco Central e a dolarização da economia, com privatização de serviços públicos essenciais (embora tenha moderado o discurso no segundo turno).
Do outro lado, Sergio Massa é o representante do atual governo e do peronismo, corrente inspirada no ex-presidente Juan Domingo Perón, e que é tão forte quanto heterogênea na Argentina, abrigando desde setores de esquerda até os mais conservadores. Ministro da Economia, o candidato do Unión por la Patria, é visto como uma voz quase independente dentro do grupo, não sendo alinhado ao kirchnerismo.
No duelo com Milei, é o representante da “moderação” e da política tradicional. Foi candidato à Presidência em 2015, alcançando um terceiro lugar com expressiva votação, 21%, e em 2019 apoiou a chapa Alberto Fernández/Cristina Kirchner. Ainda que não tenha debelado o principal problema econômico argentino, a inflação, é encarado também como aquele que impediu um colapso total.
O jogo de Macri
Tão logo terminou o segundo turno, Milei acenou para a candidata derrotada Patricia Bullrich, inclusive cogitando seu nome publicamente em uma eventual vaga no ministério da Segurança, cargo que já ocupou no governo de Mauricio Macri. Não à toa: ela obteve aproximadamente 24% dos votos no turno inicial. Três dias após o pleito, a candidata do Juntos por el Cambio anunciou apoio ao ultraliberal, assim como o ex-presidente.
O anúncio rachou a coligação, já que havia quem defendesse a neutralidade e, mais tarde, muitos declararam apoio a Massa. Chama a atenção o posicionamento de Macri. Em uma entrevista concedida ao ex-presidente colombiano Iván Duque, para uma série de relatórios do Woodrow Wilson Center, afirmou que Milei não representa um “perigo à democracia”. O porquê é curioso:
"Há coisas que ele propõe que parecem extremas, mas ele terá que negociá-las no Congresso porque não tem votos suficientes para fazê-las sozinho. Não há perigo."
Ou seja, Macri admite que as propostas do candidato do La Libertad Avanza podem ser “extremistas”, mas que o arranjo democrático seria salvo pelo Legislativo. Quase como se fosse tudo bem ele eventualmente atentar contra a democracia, já que haveria um contrapeso que impediria um dano mais forte.
A lógica do ex-presidente opera quase no mesmo sentido daqueles que diziam votar em Bolsonaro, no Brasil, acreditando que ele não faria o que prometia fazer. Vota-se em um candidato como personagem de reality show, não pelas suas propostas, mas pela sua personalidade, “genuína”, “autenticidade” ou qualquer suposta qualidade que um político tradicional não poderia ostentar.
Macri, no entanto, não é um eleitor comum, e na mesma entrevista mostra o porquê do seu apoio. "A Argentina tem que se comprometer, e é parte central da plataforma de Milei, assim como da nossa, com a redução estrita e urgente dos gastos públicos para equilibrar as contas. A partir daí, abrir o país, como fez a Colômbia". É aqui que os dois mundos se encontram e é nesse tipo de enlace que os neoliberais não se importam em namorar o fascismo.
Nada será como antes
O ex-presidente também teria interesse em ser uma espécie de avalista do governo Milei, dado que poderia considerar o eventual mandatário uma figura fraca, sem sustentação política para chegar ao final do mandato. Macri poderia se destacar fazendo a ponte com parte da elite econômica e política argentina, pronto para se apropriar dos lucros, se existissem, ou pular do barco se ele adernasse.
A passagem de Massa ao segundo turno, em primeiro lugar, é uma derrota maiúscula para o ex-presidente pelo fato de o peronismo/kirchnerismo ser seu maior antagonista, mas também por representar uma versão política vitoriosa, aquela que atribui boa parte dos problemas econômicos do país à gestão macrista.
Após chegar à Presidência prometendo “pobreza zero”, o então presidente adotou políticas de austeridade fiscal e liberalizou mais a economia, sem resultados efetivos para a população e levando o país a uma combinação de recessão com inflação em alta. O cenário levou de novo a Argentina ao Fundo Monetário Internacional (FMI), protagonista de crises passadas, enredando o país em um aprofundamento das medidas que o levaram ao desastre econômico.
Isso explica, em parte, como um ministro da Economia de um governo com índices de popularidade ruins e inflação em alta pode vencer. Ainda que não tenha resolvido os principais problemas na área, muitos entendem que a culpa principal é de Macri e do acordo com o FMI que encurta o horizonte de ações do atual governo. Isso, sem contar que a gestão atual também toma medidas na área social para minimizar os impactos da crise econômica.
Por outro lado, o ex-presidente luta pela sobrevivência do seu próprio grupo político com uma concorrência mais acirrada em seu campo. Nas eleições para o Congresso Nacional, enquanto o La Libertad Avanza passou de três cadeiras para 37 deputados, o Juntos por el Cambio caiu de 118 para 93. Outro traço em comum com países nos quais a extrema direita avança: ela ocupa quase sempre o espaço antes ocupado pela direita e centro-direita tradicionais.
No Brasil, por exemplo, o bolsonarismo avançou sobre o terreno antes ocupado pelo PSDB nacionalmente, levando os tucanos a uma posição de coadjuvantes no cenário. Isso, em parte, por conta da própria postura do partido de apostar em uma espécie de mimetismo que emulava posições extremistas.
No caso do macrismo, ainda há força, já que o grupo, entre outros governos, detém a prefeitura de Buenos Aires, por exemplo. Mas já é um espaço em disputa e ainda não há como dimensionar o impacto que haverá no debate público com parlamentares de ultradireita tendo voz no parlamento.
Quem leva?
Na Argentina, é proibida a divulgação de pesquisas na semana que antecede a eleição e as últimas sondagens podem não captar movimentações de última hora. A maioria delas, por exemplo, apontava Milei como vencedor no primeiro turno, o que não aconteceu.
Agora, a Atlas Intel tinha Milei à frente, por pouco mais de quatro pontos de diferença para Massa: 52,1% a 47,9%, enquanto a consultoria Circuitos trazia Massa na liderança por 2,1% em relação ao rival, 44,2% a 42,1%, em uma conta que inclui 9,8% que não vão votar em ninguém e 3,9% de indecisos. A mais recente sondagem divulgada, do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (Celag), tinha Massa com 50,8% contra 49,2% para Milei.
O que aumenta ainda mais a possível imprecisão dos dados dos levantamentos foi que nenhum deles mediu os impactos do debate realizado no domingo (12) no qual Massa foi nitidamente superior a Milei, o que levou o candidato do La Libertad Avanza a culpar apoiadores do rival, que tossiriam no estúdio para desconcentrá-lo.
Em mais um lance semelhante à estratégia utilizada por Trump e Bolsonaro, a irmã do candidato Karina Milei apresentou, uma queixa judicial denunciando uma “fraude eleitoral” no primeiro turno sem qualquer tipo de prova. Segundo a campanha do presidenciável, a Gendarmaria, força militar que auxilia na segurança, teria alterado o conteúdo das urnas e os registos de votação nas eleições gerais.
A juíza eleitoral María Servini convocou representantes da campanha de Milei, Santiago Viola, para que trouxesse provas, o que não aconteceu. “Não denunciamos as ações de nenhuma força de segurança”, disse ele, apontando que a peça era baseada apenas em “comentários nas redes sociais e em algumas notas jornalísticas e testemunhos recolhidos pessoalmente que faziam referência aos fatos divulgados”. De acordo com Viola, Karina Milei não poderia comparecer à convocação, não tendo “nenhuma informação que possa acrescentar”.
Se indica um sinal de certo desespero, convém não descartar a possibilidade de triunfo de Milei, já que tudo indica uma eleição acirrada. O futuro da Argentina depois do domingo é um próximo episódio.
Foto de capa: Mídia Ninja