Crise no Equador e a farsa da "guerra às drogas"
Assassinato de presidenciável traz à tona um cenário similar a de outros países do continente: a combinação de ausência do Estado, punitivismo e superlotação carcerária levando ao aumento da violência
Nesta quarta-feira (9), o candidato à Presidência do Equador Fernando Villavicencio, de 59 anos, foi assassinado na capital do país, Quito, após sair de um compromisso eleitoral. Ele disputava uma vaga em um possível segundo turno na corrida eleitoral, de acordo com as pesquisas mais recentes, e sua campanha havia informado à mídia, em 4 de agosto, que o presidenciável continuaria viajando pelo país, mesmo diante de ameaças de morte que teria recebido de “grupos criminosos".
Em vídeo cuja autenticidade não foi comprovada, o grupo Los Lobos, tido como a segunda organização criminosa mais forte do país, assumia a responsabilidade pelo assassinato. Na noite da quinta (10), contudo, outro vídeo também atribuído à facção, negava a autoria. O presidente do Equador, Guillermo Lasso, decretou estado de exceção em todo o país para, segundo a justificativa oficial, assegurar a segurança da eleição de 20 de agosto.
O episódio é mais um sinal da instabilidade em um país cujos eleitores têm hoje na segurança pública uma de suas principais preocupações. O misto de ausência do Estado, modelos punitivistas/proibicionistas anacrônicos, com facções criminosas aumentando seu poder e estabelecendo conexões políticas importantes, conta um pouco do cenário não só equatoriano, mas também uma realidade comum, em maior ou menor medida, a de muitos países da América Latina. Incluindo o Brasil.
Geopolítica do tráfico
O assassinato de Villavicencio é o terceiro homicídio de políticos no espaço de um mês. Em 18 de julho, o candidato a deputado pela província de Esmeraldas, Rinde Sanches, foi morto em uma suposta tentativa de assalto. No dia 23, o prefeito da cidade de Manta, Agustín Intriago, foi alvejado na cerimônia de inauguração de uma obra, vitimando também outra pessoa.
A violência política toma vulto após o agravamento do quadro de violência em todo o país. O número de homicídios saltou de 1.088 em 2019 para 4.761 em 2022, segundo as cifras oficiais, que podem estar subdimensionadas.
De acordo com diversos especialistas, a nova geopolítica do narcotráfico foi um dos fatores determinantes para o quadro atual. Desde janeiro de 2018, ocasião em que houve um atentado a bomba em uma delegacia da cidade de San Lorenzo, na província de Esmeraldas, o padrão de violência passou a escalar outro patamar.
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Os pesquisadores e especialistas em segurança María Fernanda Noboa e Luis Córdova destacaram, no site Primicias, que o acordo de paz estabelecido entre o governo colombiano de Juan Manuel Santos com as FARC e o início de um processo semelhante com o ELN, em 2016, criou um vácuo de poder na área de cultivo de coca e gestão da produção, fabricação e distribuição de narcóticos na vizinha Colômbia. As organizações dedicadas ao negócio se multiplicaram, o mesmo acontecendo no Equador em 2017, quando o “chefão” do tráfico local 'Gerald', foi preso nos Estados Unidos.
Com a pandemia, a logística provoca uma nova mudança. Torna-se mais difícil transportar drogas internacionalmente por vias aérea e terrestre, e as rotas marítimas passam a ser mais visadas, o que aumenta a relevância de cidades portuárias como Guayaquil. Os entorpecentes passam a ser coletados em vários pontos do país, antes um local apenas de trânsito, para serem enviadas ao seu destino final, em geral, a Europa.
Falência do sistema carcerário
Dentro da crise equatoriana, outro elemento que aproxima o país de seus vizinhos no continente é o sistema prisional, com condições precárias e superlotado. A exemplo do que ocorreu no Brasil, ele também acaba dando oportunidades para que as facções arregimentem ainda mais pessoas para suas fileiras, cobrindo a lacuna do Estado que ignora os direitos das pessoas privadas de liberdade.
Nos anos de 2021 e 2022, 419 pessoas perderam a vida nas prisões equatorianas, incluindo um massacre com 119 mortes, em setembro de 2021, na Penitenciária do Litoral, em Guayaquil. A situação fez com que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) realizasse uma visita de trabalho às penitenciárias do país entre 1º e 3 de dezembro de 2012, o que resultou na elaboração do relatório "Situação das pessoas privadas de liberdade no Equador", divulgado em março de 2022.
“O Equador vive uma grave crise penitenciária de caráter estrutural, caracterizada por níveis sem precedentes de violência e corrupção dentro das prisões, e que responde ao abandono do sistema prisional por parte do Estado anos atrás, bem como a ausência de uma política criminal abrangente. A esse respeito, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Comissão ou CIDH) alerta para a falta de medidas estatais voltadas para a prevenção e controle do crime através de uma abordagem de direitos humanos que aborde as causas que originam o mesmo”, pontua o informe. “Nesse sentido, se observa a utilização de uma política que privilegia a prisão para resolver problemas de segurança cidadã. Isto, por sua vez, resultou em um aumento exponencial no encarceramento nos últimos anos, uso excessivo da prisão preventiva, obstáculos para instituir medidas alternativas à privação de liberdade, e impossibilidade de garantir a reinserção social dos detentos.”
No Equador, houve um crescimento de 469,29% da população carcerária no período de 20 anos até 2021, aponta o relatório, ressaltando ainda que as políticas de drogas e reformas legislativas promovidas pelo Estado aumentaram as penas para crimes relacionados ao uso de substâncias proibidas e impossibilitou a aplicação de benefícios aos condenados. A prisão preventiva, expediente banalizado também no Brasil, é ainda outro fator que contribui para o encarceramento em massa: até 29 de outubro de 2021, mais de 39% da população carcerária total encontrava-se neste regime.
Além da superlotação e da violência dentro dos cárceres, a Comissão constatou outras omissões estatais na garantia de direitos básicos como “i) falta de separação por categoria; ii) infraestrutura deficiente; iii) cuidados médicos negligentes, e consequentes desafios na implementação de medidas no contexto da covid-19; iv) nutrição inadequada; v); obstáculos no acesso à água; vi) insuficiência de pessoal prisional; vii) falta de perspectiva de gênero no tratamento prisional, e; viii) obstáculos à efetiva reinserção social da população prisional.”
”O governo equatoriano tem uma passividade que beira a intenção. Nós nos perguntamos se ele está realmente interessado em garantir os direitos das pessoas privadas de liberdade ou se com suas omissões o que ele efetivamente busca é que os assassinatos aconteçam”, questionou a coordenadora da Aliança de Organizações de Direitos Humanos no Equador, Vivian Idrovo Mora, em entrevista ao site Lo que Somos.
Quem ganha com a crise?
Difícil olhar para o cenário equatoriano e não refletir como a combinação de políticas infrutíferas e que violam os direitos humanos, como o encarceramento em massa e a visão exclusivamente punitiva em relação às drogas, se reproduz em quase toda a América Latina. Como observa a própria CIDH em seu relatório:
“Nesse contexto, a Comissão reitera que não há evidências empíricas que demonstrem que políticas baseadas em maiores restrições ao direito à liberdade pessoal tenham um efeito real na redução da criminalidade e da violência ou que resolvam, de forma mais ampla, os problemas de insegurança cidadã. Pelo contrário, o nível de violência nas prisões aumentou para níveis sem precedentes.”
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Fato é que as ciências criminais têm se debruçado sobre o problema e, mesmo assim, a classe política de diversos países –os latino-americanos em especial – investe sempre em respostas como as que levam a uma crise de insegurança como a vivida hoje pelo Equador. É um negacionismo que tem custado vidas, mas que interessa não apenas aos proponentes desse tipo de medida, que as vendem como fórmulas mágicas, mas também a outros setores.
Ao Primicias, a pesquisadora María Fernanda Noboa lembra que desde assinatura do acordo de paz do Equador com o vizinho Peru, em 1998, as Forças Armadas do país perderam, além de benefícios, as ameaças que dariam a elas, segundo a especialista, “sua razão de ser”. Desde então, a instituição passou a procurar motivos para manter sua importância e seu orçamento dentro do aparelho estatal. E a “guerra às drogas” vem a calhar para esse propósito.
Noboa destaca que a militarização do problema da segurança faz com que militares executem tarefas para as quais não são treinados e os policiais acabam absorvendo a doutrina militar. Ao mesmo tempo, o Estado destina cada vez mais recursos para comprar armas e tecnologia de segurança, ajudando a sustentar um negócio bilionário e drenando recursos que poderiam ir para outras áreas, como Saúde e Educação.
O protagonismo militar na atuação do governo ficou evidente na entrevista concedida pelo ministro da Defesa Luis Lara, nesta quinta-feira (10), sobre o assassinato de Villavicencio. Ele pediu "a unidade dos equatorianos para defender a nação”. “É preciso entender que as máfias declararam guerra ao Equador e que o Estado e as Forças Armadas responderão com todo o seu poder”, argumentou.
Até agora poucos discutiram com a devida responsabilidade, no âmbito dos governos, tanto a questão das drogas, sob uma perspectiva mais ampla, como o encarceramento, tema invisibilizado mesmo por setores ditos progressistas em boa parte do mundo. Não é mais possível acreditar que repetir fórmulas que deram e dão errado vão resultar em algo distinto do que se viu até agora.
Foto de capa: Fernando Villavicencio como parlamentar na Assembleia do Equador, em janeiro deste ano (Assembleia Nacional do Equador)