O Partido Republicano tem a cara de Donald Trump
Resultado de Iowa mostra o quanto o ex-presidente e suas ideias se tornaram dominantes na legenda. E também aponta que os limites entre conservadores e extremistas nos EUA vão se dissolvendo
Os resultados dos caucus de Iowa mostrou uma vitória consistente de Donald Trump, como já apontavam as pequisas. Até a apuração quase totalizada, com 99%, ele contou com 51% dos votos, garantindo 20 delegados para a convenção nacional do Partido Republicano que será realizada em junho.
O ex-presidente saiu vitorioso em 98 dos 99 condados do estado, sendo derrotado por Nikki Haley apenas no Condado de Johnson, onde fica a Universidade de Iowa, por um único voto (11.271 a 1.270).
A primeira disputa entre os republicanos para definir o candidato à Casa Branca conta com uma parcela pequena do número total de delegados da legenda no país, somente 1,6%, mas tem, como dito aqui, a função de ser uma espécie de "peneira" na qual os candidatos menos cotados desistem em vista de um resultado abaixo do esperado.
Foi o que aconteceu com o empresário do setor de biotecnologia Vivek Ramaswamy, um novato na política. Ele suspendeu sua candidatura após terminar em quarto lugar, com aproximadamente 8% dos votos. Durante a disputa, tentou ser uma espécie de "Trump mais jovem" (tem 38 anos), buscando repetir a trajetória de um bilionário que chega à Presidência dos Estados Unidos.
Com um ideário bastante similar ao do ex-presidente, Ramaswamy foi visto por muitos como uma espécie de linha auxiliar, chegando a dizer que seu então rival havia sido "o melhor presidente do século XXI". Agora, já declarou apoio a Trump, anunciou que provavelmente estará com ele em New Hampshire, onde acontecem as próximas primárias, e sugeriu que DeSantis e Haley deveriam "seguir o exemplo" e retirar-se da corrida também.
Mas DeSantis e Haley seguem
Iowa mostrou um quase zero a zero entre os postulantes ao papel de principal desafiante de Donald Trump.
O governador da Flórida, Ron DeSantis, obteve um segundo lugar, com 21,2%, que, dadas as expectativas iniciais e o maciço investimento de sua campanha no estado (aproximados US$ 55 milhões em publicidade), são frustrantes.
Iowa consagrou políticos da mesma linha de DeSantis, como em 2008, quando o ministro batista e ex-governador do Arkansas, Mike Huckabee, venceu a disputa local; em 2012, com o triunfo do conservador ex-senador da Pensilvânia, Rick Santorum; e em 2016, ocasião em que o senador "evangelista" Ted Cruz derrotou Trump. Ali, um estado conservador, com 77% de sua população autodenominada cristã e na qual os protestantes da linha evangélica representam 28% dos residentes, era a melhor chance de DeSantis por conta do seu perfil.
Contudo, nem mesmo o apoio governador do estado, Kim Reynolds, e do popular líder evangélico Vander Plaats — que esteve junto a todos os vencedores das primárias republicanas no estado desde 2008 — foram capazes de impulsionar sua candidatura.
Só não foi um desastre maior para DeSantis, cuja campanha vem há meses em uma queda quase contínua, pelo fato de o governador ter mantido a segunda colocação, que esteve em risco pela ascensão recente da ex-embaixadora da ONU e ex-governadora da Carolina do Sul, Nikki Haley, nas pesquisas. Um terceiro lugar praticamente sepultaria as pretensões do governador da Flórida, que seguem em estado crítico, mas ainda vivas para New Hampshire.
E é neste estado que Haley aposta suas fichas. Suas expectativas eram baixas em Iowa, onde conquistou o terceiro lugar, com 19,1%, mas algumas sondagens lhe davam a vice-liderança. Assim, o resultado também traz uma certa frustração para sua campanha, que tem um cenário bem distinto em New Hampshire, em 23 de janeiro.
A votação ali inclui eleitores independentes, ou seja, não registrados como sendo do Partido Republicano. Pode ser uma vantagem para Haley em um local mais diverso, com um eleitorado mais moderado e uma população mais graduada em termos de educação formal, segmento em que Trump vai pior nacionalmente.
Pesquisas divulgadas em 2024 mostram uma vantagem de Trump sobre Haley que varia entre 7 e 20 pontos, de acordo com o instituto. A desistência de Chris Christie, que tinha, segundo as mesmas sondagens, de 9 a 12 pontos, pode ajudar a candidata a reduzir a diferença.
O que a vitória de Trump mostra
Na corrida pela candidatura presidencial do Partido Republicano, Iowa costuma ter disputas acirradas. Para se ter uma ideia, antes do triunfo de Trump nesta segunda-feira, a maior margem de vitória em uma convenção republicana em Iowa havia sido a de Bob Dole, por 13 pontos, sobre Pat Robertson, em 1988.
A expressiva vitória de Trump é fruto de diversos fatores, entre eles um trabalho de comunicação via redes sociais e também em veículos da mídia comercial alinhados que nunca cessou após a derrota em 2020. Trata-se ainda da consolidação junto a uma parcela significativa dos Estados Unidos de conceitos e valores propagados pela estrema direita, como mostram alguns dados da pesquisa de boca de urna feita pela Associated Press/VoteCast.
Entre os 1.500 entrevistados, é possível aferir o quanto as instituições do país estão desacreditadas em parte do eleitorado republicano. São 4 em cada 10 pessoas que dizem não estar muito confiantes ou nem um pouco confiantes na integridade das eleições nos Estados Unidos.
Quando são ouvidos os eleitores de Trump, somente 6% acham que Biden ganhou legitimamente a corrida presidencial de 2020, enquanto 90% afirmam que não. A narrativa do ex-presidente também ressoa no eleitorado de DeSantis: 54% deles dizem que não foi uma vitória legítima, percentual que chega a 19% dos votantes de Haley.
Quase 6 em cada 10 eleitores entrevistados têm pouca ou nenhuma confiança no sistema jurídico americano. Isso também mostra como foi bem sucedida a estratégia de Trump de comparecer espontaneamente às audiências judiciais como réu em seus processos em Nova York e Washington, em vez de ir a Iowa nos últimos dias antes da votação. A imagem de vítima de perseguição política tem tido aderência na sua base.
Outro indicador forte de como o discurso de Trump influencia e é influenciado pelo contexto de diversas regiões estadunidenses é a questão da imigração, considerada pelos republicanos de Iowa a mais importante do país para 4 em cada 10 entrevistados. Aproximadamente um terço disse que era a economia.
Quase três quartos dos entrevistados disseram que os imigrantes são negativos para o país e aproximadamente 9 em cada 10 participantes apoiam a construção de um muro ao longo da fronteira sul do país. A retórica anti-imigração também é usada de forma recorrente pela extrema direita europeia e não surpreende o tema ter sido abordado de uma das piores formas por Donald Trump em diversas ocasiões.
Em um discurso proferido em New Hampshire, em 16 de dezembro, o ex-presidente afirmou que os imigrantes estavam "envenenando" os Estados Unidos. "Isso é o que eles fizeram. Envenenaram instituições psiquiátricas e prisões em todo o mundo – não apenas na América do Sul, não apenas nos três ou quatro países em que pensamos, mas em todo o mundo. Eles estão vindo para o nosso país, da África, da Ásia – de todo o mundo. Eles estão entrando em nosso país", disse, emulando termos utilizados por Hitler a respeito do mesmo assunto.
Pode-se dizer que o eleitor republicano de Iowa é distinto de outros estados. Majoritariamente branco, vindo de comunidades rurais, conservador, mas é um segmento que pode ser decisivo nas eleições. Lembrando ainda que Trump derrotou Hilary Clinton, em 2016, em estados-chave predominantemente urbanos. E uma pesquisa da CBS News indica que 82% dos eleitores republicanos concorda com os termos utilizados pelo ex-presidente para se referir aos imigrantes.
Além do apoio desta parcela dos eleitores, a maioria das figuras proeminentes do Partido Republicano também está com Trump. Ele conta com 135 endossos de republicanos no Câmara e Senado, enquanto DeSantis tem cinco apoiadores e Haley um único apoio no Congresso.
O fato de um conjunto de ideias de cunho extremista ser hoje absorvido com tanta facilidade por parte da população e do establishment político, a ponto de as pessoas fecharem os olhos para quatro processos criminais em que Trump é réu, além de outros inúmeros processos, é um sinal de alerta da erosão do edifício da democracia formal. E sinaliza ainda que o limite entre a direita e a extrema direita nos Estados Unidos vai se tornando cada vez menos visível.
Foto de capa: Pixabay